A Fresta é uma coluna quinzenal dedicada às realizações do movimento surrealista e seus entornos.
Eugenio Castro
tradução por Natan Schäfer
Madrid. Segunda-feira, 26 de junho de 2017
Ali pelas três, três e meia (a hora não é mero acaso), vou caminhando pela rua Príncipe de Vergara, creio que na altura do número 120, mas do outro lado da rua, ao longo dos números ímpares e em direção a El Retiro. Meu olhar se cruza com o de uma mulher que aparenta uns quarenta e cinco, quarenta e oito anos (?). Ela fica olhando para mim fixamente. Faço o mesmo com relação a ela, que vem até mim sem vacilar, me cumprimentado e perguntando como estou, como se me conhecesse. Respondo: de onde nos conhecemos? Sua resposta: isso não importa. Ela insiste: o que você anda fazendo? Fico desconcertado. Mas lhe conto que estou trabalhando em uma oficina sobre poesia e cinema e que tenho feito algumas traduções. Ela me leva — e por inércia me deixo conduzir — até um banco situado ao nosso lado e nos sentamos. Enquanto isso, já me disse seu nome, que escrevo da seguinte maneira: Sandra Miló. Ela insiste para que eu o escreva e anote seu número de telefone: Sandra Milhaud, é assim que se escreve o sobrenome, como graças a ela fico sabendo. Ela não para de me dizer coisas desconexas e em alta velocidade. Que sim, seu negócio era (ou é) música. Que sim, tinha sido apresentadora de televisão (?). Que também sempre se interessou por poesia. Me diz inclusive que publicaram algum poema seu em homenagem a Gloria Fuertes [1]. E tira do bolso um poema de umas seis páginas (ou ao menos parece que foi isso o que vi) e se pôs a lê-lo para mim com paixão, em um bom tom de voz, primeiro dando uma olhada no papel e, imediatamente a seguir, de cor. E tinha potência, não era medíocre (como podia ter pré-julgado diante da menção à Gloria Fuertes). E, inclusive, mencionava Dalí e o surrealismo de uma forma — que apenas posso evocar, porque de tão abrumado que estava não pude reter o que ela dizia mais do que atmosfericamente — que denotava violência verbal. Ela termina de ler o poema para mim sem olhar para ele. Penso comigo: é um poema que tem força expressiva. Peço seu email e ela insiste que anote o número de seu celular. Várias vezes pede que lhe telefone, dizendo que quer comparecer no que eu venha a organizar. Ao comentar com ela (anteriormente) que a última oficina tinha sido sobre cinema e o poético, logo me diz que escreveu um roteiro. Reitera que deseja assistir ao que eu venha a fazer futuramente, que não dá a mínima se aparecerem só dez pessoas, que jamais conta com cinco mil. E, pouco a pouco, enquanto segue falando, me provoca: agora sim, deixa eu te contar. Lhe conheço há muitos anos, daquela vez em que lhe parei na rua Gravina para pedir ajuda. Você me tratou muito bem. Ainda que tenha me dito que não pudesse me ajudar, você me recebeu afetuosamente, comentando que também “estava na mesma”. Ela chega até a lembrar (ou a me lembrar) que eu estava acompanhado por uma mulher jovem e morena. E mais uma vez alude ao tratamento que lhe dispensei. Confesso que não lembro de nada. Mas, de fato, naquela época em que ela afirmou ter me visto eu trabalhava na área de Chueca que, de acordo com sua confissão, ela frequentava.
Por outro lado, acrescenta que vende seus poemas a dois euros. E que, inclusive, as pessoas às vezes os compram. Reconheço que em nenhum momento demonstrei interesse algum em adquirir aquele poema que ela tinha lido para mim, se é que aquele estava à venda. Agora me arrependo de não ter feito isso.
Além disso, guardei bem que sua beleza é sóbria, com um rosto que denota “padecimento”, tanto presente quanto passado. Anda acompanhada de um cachorro. As unhas com o esmalte descascando dão às suas mãos um certo ar de desleixo. Os pés estão descuidados. E também as calças, bem justas, revelam um certo abandono. Mas nada que se associe a uma vida de morador de rua. Não posso esconder que, ao longo de todo aquele momento, tive a impressão de que ela poderia padecer de um certo tipo de alteração (psicológica? emocional?), o que de modo algum diminuía a autenticidade e a verdade de tudo que expressava. Em um dado momento, o cachorro parece inquieto já que, olhando para a esquerda de onde nos encontramos, deve ter visto algo que o faz latir insistentemente. Ela se dá conta e pergunta o que o animal viu. Olha em direção ao lugar para onde o cachorro lança seus latidos, mas não vemos nada de irregular. Em todo caso, talvez fosse o totem do estabelecimento logo ao lado. Ela decide levantar e levar consigo o cachorro para identificar o que há de “perturbador”. Olha para o cachorro e ele demonstra reticências para caminhar, expressando temor. Como disse, achamos que se trata de um totem, com forma de vela, cuja haste se introduz em um suporte com um buraco que o fixa. Sem poder verificar se de fato era isso, e meio com vontade de seguir meu caminho, me despeço dela lhe dando um par de beijos na bochecha. Seu gesto denotava elegância e distância.
Salamandra 23-24 (2021), intervenção surrealista — Imaginação insurgente
— Crítica da vida cotidiana
Há meses estou adiando a escrita do comentário a Um encontro, de Eugenio Castro, que provavelmente você acaba de ler.
Atribuir isso a algum fato — por exemplo, uma mudança de apartamento e, portanto, de caminhos — seria uma solução fácil. Da minha parte, volta e meia o mistério me deixa absorto. Afinal, como é possível que repentinamente desapareçam todas aquelas reflexões sobre a surpresa e o espírito novo, os romances góticos, os fantasmas, o encontro como um acontecimento decisivo, radical e transformador?
Enquanto sigo procurando trilhas que permitam o movimento, tudo que tenho para oferecer é essa meia dúzia de pistas como um montinho de gravetos secos ou um punhado de sementes. Se você encontrar algo brilhante, por gentileza, não hesite: entre em contato.
Natan Schäfer
Curitiba, 8 de setembro de 2023
NOTA
[1] Gloria Fuertes (1917 – 1998) poeta espanhola da geração de 1950 dedicada sobretudo à literatura
infanto-juvenil, tendo também participado de programas televisivos infantis.
Fotografia: Rua 15 de Novembro, sentido praça da Sé – Guilherme Gaensly (Acervo Instituto Moreira Salles).